CEAA - Centro de Estudos Arnaldo Araújo

Projeto

TOMATE. corpo. trabalho. pobreza

PROJECTO TOMATE
corpo. trabalho. pobreza


Qui, dans l’épaisse nuit qui couvre la nature... (Voltaire)

*uma memória
Em Julho, um amigo, o Pedro Ruiz, convidou-nos a visitar uma pequena ilha constituída por duas casas em ruínas, situada no Porto, nas traseiras da galeria K11 Paiol Azul, em frente ao Palacete Pinto Leite. O simples atravessar de uma rua separa a imponência de um Palacete do rasto de miséria e sobrevivência de uma ilha. Nesta, viveram duas idosas, pobres, as quais, entretanto, morreram. Rodeando uma das casas, distingue-se um extenso tomateiro cheio de frutos, quase todos pequenos tomates verdes. Porém, num deles, maior e já maduro, era visível uma grande fissura, idêntica às que atravessavam as paredes daquelas casas abandonadas ou às que encontramos desenhadas no corpo sob a forma de cicatrizes. Assinalava a possibilidade de, a partir de um fruto, se enunciar a linguagem do prazer ou da culpa, da pobreza e da desigualdade.
 
O tomate foi congelado e abandonará esse estado no dia da inauguração, em Setembro de 2020. Um tomate como sujeito-objecto, possível ethos do discurso.
 

*um projecto 
O corpo. Como no filme de Bong Joon-ho, Parasitas, a pobreza tem cheiro. O mesmo cheiro. E cheiram mal aqueles corpos. As casas também. A desigualdade social atravessa-as. A desigualdade também se transmite. Palácios e ilhas. As casas das pessoas. Umas são ricas e outras são pobres. Corpos de trabalho, de sobrevivência, divididos em modos de produção, por vezes transformados em modos de repressão. O operário social está em todo o lado, da fábrica à universidade. Um trabalho sem prazer num corpo sem prazer. Como no mundo de Kasper Hauser, no filme de Herzog, há corpos que desconhecem as casas. Apenas sabem algumas palavras e ainda não entendem a poesia mas aspiram tocar piano ao ritmo da respiração. Necessidade e desejo figuram como terreno comum do que no tempo se vai constituindo e dando conta de obstinados modos de ser. Resistindo à armadilha do medo, nobres sabores e odores do prazer são convocados. Fazem vibrar um outro corpo que desorienta e subverte. Apelando à função poética que perturba as divisões hierárquicas, o corpo alimentar combina todos os delírios. É a violenta  linguagem da vida que fala através do organismo (Nietzsche e Artaud), da orgia (Sade), do campo de forças (Deleuze), do que é produto da organização social (Marx). No corpo que afirmamos como cadeia sem princípio nem fim, é a libertinagem, a ordem da vida libertina, a lei sem lei do desejo, e não a da sexualidade, como tão lucidamente Foucault considerou a propósito de Sade, que aqui nos importa nomear. Todos os sons do desejo, todos os desprendimentos do pensamento. A liberdade sem fim à vista. Há quem escolha o reino das submissas e entediantes zonas de sombra. Como em Parasitas, poderemos continuar a fingir que não somos família. Preferimos, todavia, quadros mais luminosos.

Curadoria: Eduarda Neves
Design gráfico: Luís Sousa Teixeira
Fotografia: António Alves